Esta palavra não se encontra no dicionário da língua natureza: heroísmo. Trata-se de um eufemismo dentro do seio da verdade. E a verdade é natural, não uma criação do artificialismo. O sujeito se proclama o bom, o melhor; ou mesmo alguém o chama de “nosso rei, nosso exemplo, nosso norte” ao vivo e a cores. Errado. O bom não se revela, nunca se apresenta, nem sequer é julgado benévolo, caritativo, perfeito, quanto menos mau, nocivo, danoso, perverso, malvado. Todos nós fazemos esse exercício crítico de alguém, mas se trata de ato nulo aos olhos da autenticidade. Talvez seja apenas uma metáfora.
Fiz essa preliminar para afirmar que São Sebastião do Rio Preto perdeu um de seus maiores baluartes de todos os tempos. Não, ele não foi prefeito, nem vice-prefeito, nem vereador, nem juiz de paz e não contribuiu para a emancipação política do arraial que pertencia a Conceição do Mato Dentro. Ele nunca subiu num palanque para proferir um discurso ou se proclamar dono de algum projeto executado ou de uma ideia levada à frente. A princípio, o seu heroísmo foi ter nascido na Terra do Gambá, apelido dos velhos tempos que enfurecia até os mais equilibrados. Que tempos!
Cresceu nas lides da roça desde menino, ajudando o pai, conhecido como Zé Virgulino, que o deixou órfão tão cedo, e a mãe, Dona Loló, que sempre foi querida de todos. Da escola saiu para outras cidades à procura do conhecimento necessário para ser útil na vida. Graduou-se em Odontologia no Rio de Janeiro, onde permaneceu durante a trajetória profissional e afetiva, tendo se casado, recebido do casamento dois filhos e dois netos. Quando deu como cumprida a etapa da profissão, fez como um ótimo filho, e retornou à casa. Veio, bem escondido, e trouxe como presente também para a terra a sua segunda esposa, a psicóloga Maria Cristina Santos Mariana.
Referi-me, na abertura, ao anonimato e ao heroísmo. Dr. José Gonçalves Madureira, olhos azuis, que lhe renderam, mesmo belos, grandes contrariedades por causa do preconceito da época, terrível anacronismo, sendo chamado de “Olho de Gato”. E quantas brigas lhe causaram esses olhos, hoje ambição de artistas e muitos seres humanos! Ele, mesmo tendo uma diminuta postura física, nunca correu de desaforos. Entre os irmãos Didi, Jojó e Ilma (in memoriam), a mãe Dona Loló o considerava o mais bravo quanto de “coração derretido”.
Na sua volta a São Sebastião do Rio Preto, construiu uma exemplar casa. Digo exemplar, com o respeito ao meio ambiente e aos detalhes ecológicos. Planejou e fez o seu próprio tratamento de esgoto e de água. Edificou um criatório de peixes sadios. E partiu para o convívio com a comunidade, onde mostrou a importância de proteger os córregos e rios com a fundação da Associação de Meio Ambiente, ONG colocada a serviço da comunidade. Outras iniciativas teve ao longo de duas décadas em que permaneceu no cantinho que escolheu para viver os últimos anos de vida.
Há cerca de 15 dias, estava ele carregando uma escada e ferramentas rua afora, ajudado por um amigo, instalando placas de trânsito nas ruas da cidade. Por absoluta sorte minha, me chamou quando estava na casa de minha mãe, perguntando se tinha uma extensão de energia elétrica. De novo premiado com a sorte, entreguei-lhe já ligado esse fio, que serviu para acionar a máquina e, assim, afixar uma placa em um poste. Naquele momento vi não apenas o jovem de 84 anos, de pele avermelhada pelo sol a pino, com os cabelos brancos sobressaindo-se debaixo do boné. Enxerguei um herói que tanto São Sebastião do Rio Preto precisou ter, mas que o destino lhe roubou repentina e inesperadamente.
Geraldo Quintão, o nosso repórter quase oficial, e Dra. Leone Valério de Souza, sua prima e amiga, transmitiram-me a triste notícia de seu falecimento neste sábado, dia 16 de abril. Foi um golpe verdadeiro dado, como o infarte que o fulminou. Sou muito sincero em dizer agora uma verdade que talvez ninguém a diria: ele fará mais falta à sua terra natal do que à família, filhos e netos. A família ele organizou e deixa pronta, feliz e realizada. A cidade continua sua órfã perene. Contudo, graças a Deus, um grande acréscimo fica e não tem preço: o exemplo que ficará para sempre.
José Sana